A questão do negro no Brasil
Trezentos anos de escravidão africana no Brasil representada pelo cruel regime social de sujeição do negro e utilização de sua força, explorada para fins econômicos, como propriedade privada do homem branco, criaram problemas bem mais graves e profundos do que geralmente se imagina.
Se impactou a comunidade negra, impondo-lhe índices de desenvolvimento humano mais baixos do país, afetou também o etos da população branca,- “Aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou manifestações culturais”- Aurélio, com sutis sentimentos contra os afro-descedentes. A discriminação ao negro no Brasil se dá com o encobrimento com subterfúgios como se percebe nas análises de dados socioeconômicos.
De fato, embora esteja provada e comprovada a enorme desigualdade pelos índices socioeconômicos oficiais entre brancos e negros, ela continua ser olimpicamente ignorada pela cultura “branca”. Por significativo exemplo, quando se trata da “dívida social” ela é generalizada para todos os segmentos da população do país, esquecendo-se de seu principal credor, a população negra. Pior, qualquer movimento que vise liquidar esse injusto contraste social é logo tachado de discriminar os brancos... A história nos revela claramente qual é o segmento dos injustiçados e dos desprezados do nosso país, com quem, afinal, toda a população contraiu a sua “dívida social”.
A corrente negra iniciada em 1559, incrementada a partir do fim do século XVII, só se deteria quase 300 anos depois, em 1850, quando foi cortada pela pressão inglesa Escravatura lícita, sem demônios, era de origem africana, ao contrário do caso do índio, em favor do qual havia uma série de escrúpulos por parte de padres e das autoridades coloniais, o que permitiu um intenso tráfico negreiro inteiramente livre para o Brasil, transformando a escravatura um grande negócio no país.
Ainda no século XVI foi implantada a exploração de cana-de-açúcar, que obtivera grande sucesso nas colônias ultramarinas de Portugal no norte da África O escravo índio, embora mais barato, cede lugar à mão-de-obra negra, que invade os engenhos e lavoura de alto rendimento. Antonil- João Antonio Andreoni- assinalou que os escravos negros tornaram-se “os pés e as mãos” do senhor do engenho. Problema em aberto é da estimativa de quantos negros entraram na vigência desse tráfico, mas a maioria dos historiadores a terem somado cerca de 4 milhões de seres humanos.
O ciclo do açúcar começa nessa época e dura cerca de 150 anos, vindo a declinar a partir do século XVIII. Apenas cinqüenta e nove anos da descoberta, o desenvolvimento do ciclo da cana já exigia a importação do escravo negro, por que se ajustava à agricultura e ao regime de trabalho sem os intransponíveis obstáculos do escravo índio, cuja cultura se contrapunha ao esforço contínuo exigido na produção do açúcar.
Ao ciclo do açúcar, seguiu-se o ciclo do ouro, o oficialmente datado entre 1660 e 1789, mas que se iniciou efetivamente com a corrida do ouro no inicio dos anos 1700, com a vinda às Minas Gerais de levas de renóis, nativos da Bahia, Rio de Janeiro. A vida urbana mais intensa viabilizou também, melhores oportunidades no mercado interno e uma sociedade mais flexível, principalmente se contrastada com o imobilismo da sociedade açucareira.
”Portanto, a camada socialmente dominante era mais heterogênea, representada pelos grandes proprietários de escravos, grandes comerciantes e burocratas. A novidade foi o surgimento de um grupo intermediário, uma classe média incipiente, formado por pequenos comerciantes, intelectuais, artesãos e artistas que viviam nas cidades.
O segmento abaixo era formado por homens livres pobres (brancos, mestiços e negros libertos), que eram faiscadores, aventureiros e biscateiros, enquanto que a base social permanecia formada por escravos que em meados do século XVIII, representavam 70% da população mineira...”
“Para o cotidiano de trabalho dos escravos, a mineração foi um retrocesso, pois apesar de alguns terem conseguido a liberdade, a grande maioria passou a viver em condições bem piores do que no período anterior, escavando em verdadeiros buracos onde até a respiração era dificultada. Trabalhavam também na água ou atolados no barro no interior das minas. Essas condições desumanas resultam na organização de novos quilombos, como do rio das Mortes, em Minas Gerais, e o de Carlota, no Mato Grosso”.
A exploração do ouro demandava a mão-de-obra africana, não só para a exploração direta dos veio auríferos para o branco, como pela contribuição de algumas técnicas de extração aplicadas nas minas em África, fato esquecido pelos nossos historiadores.
Dizem as histórias que o escravo Galanga foi rei do Congo e chegou ao Brasil batizado de Francisco (Chico). Acumulou dinheiro, minerando por conta própria e comprou sua alforria e a de seu filho. Depois de livre, comprou a mina da Encardideira — uma área de 80 m2 que ainda pode ser visitada — e, com o ouro, libertou outros escravos. Mas situação como essa, favorável ao escravo era exceção
A distribuição de escravos se fazia com a venda a prazo, como se fosse cabeça de gado, mediante a garantia da safra ou hipoteca da propriedade. Uma vasta rede de interesses, com raízes na Metrópole lusitana, e se expandia pelo comércio marítimo e interior, transformou a compra e venda do negro em grande negócio, só superado pelo açúcar e ouro nos séculos 17 e 18.
Transformado em “coisa”, o escravo negro foi levado à revolta, ou à imitação do branco o seu opressor. Na tentativa de fugir à sua condição de negro, passou a se autodenominar de “pardo”. Esse fenômeno social do oprimido tentar se identificar com o opressor, se observa em todos os povos subjugados cruelmente por um suposto ser “superior”.
Pardo, segundo Aurélio, [Do lat. (leo) pardus (por se considerar que pardus era um adj. referente às manchas de cor escura que distinguiriam o leopardo do leão), de um branco sujo duvidoso, cor entre o branco e o negro. Ora, nunca existiu tal etnia, mesmo porque está comprovado por estudos genéticos que a grande maioria do branco brasileiro, ao contrário do que muitos imaginam, tem fortes afinidades com o índio, não com o negro.
Não obstante o surgimento de uma corrente de abolicionistas da escravidão até 1866, no campo das medidas oficiais nada se empreendeu para alcançar a emancipação do negro, isto é, o gozo dos direitos civis. A abolição da escravatura declarada em 13 de maio de 1888, após 300 anos de escravatura não trouxe a emancipação do negro.
Continuou excluído da sociedade brasileira. A abolição da escravatura não foi seguida o parcelamento da propriedade com entrega de terras aos escravos, nem se providenciaram escolas de artífices e de educação. Substituiu-se, apenas, o escravo pelo mal assalariado, dentro do mesmo sistema cultural escravagista. “Deixaram-no estiolar nas senzalas, de onde ausentara o interesse pela sua antiga mercadoria, pelo gado humano de outrora. Executada assim, a abolição era um agonia atroz. Dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressando absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais que alforriar os senhores”, como bem disse Rui Barbosa.
Se o fenômeno de tentativa de “ embraquecimento” - a imitação do dominante branco- do negro é bem conhecido, há de se considerar o outro lado da moeda, a atitude superior do branco, a desqualificar instintivamente o negro, gerando graves conseqüências, impedindo a inclusão do negro na sociedade brasileira.
Assim, embora as estatísticas demográficas do IBGE mostrem que os “negros e pardos” compõem pelo menos a metade da população do país, economistas, sociólogos, jornalistas, políticos, professores, enfim, a intelligentsia brasileira, ou seja, os intelectuais considerados como classe ou grupo, ou, em especial, como uma elite artística, social ou política branca não se preocuparam com a desigualdade brutal entre negros e brancos no Brasil.
Paradoxalmente, já foram gastas toneladas de papel e tinta em torno da chamada “dívida social”, “desigualdade de renda”, Índices de Desenvolvimento Humano - IDH precarissimos- do Brasil, mas sem tocar na realidade dos negros, que se revela clamorosamente nestes dados.
A sociedade brasileira desconhece-os, com o obstinado acreditar na ideologia da “a incontestável superioridade do homem branco”, inclusive nos setores que se dizem “progressistas”, “de esquerda”, que se mostram sempre preocupadíssimos com desigualdade social do Brasil.
Significativo exemplo, entre milhares: - o conhecido professor de economia da Unicamp Márcio Pochmann, ao avaliar a desigualdade social do Brasil por meio dois indicadores relevantes:- o ensino médio e o superior, diz que 34% dos jovens entre 15 e 17 anos de idade estão matriculados. No Chile, 85% dos jovens nessa mesma faixa etária estão matriculados no ensino médio. E apresenta a sua solução:- Se o Brasil quiser apresentar o mesmo padrão em 2020, isto é, daqui a 15 anos, calculamos que cerca de 4,9 milhões de jovens, adicionais ao que já estão nas classes, vão precisar cursar o ensino médio. Isso significa o aparecimento de 149 mil turmas, o que exigiria 47 mil novas salas de aula e a contratação de 510 mil professores, etc. Tudo bem, não fosse o professor da Unicamp ter usado estatísticas relativas apenas ao segmento branco do país.
De fato, se tivesse usado dados referente à outra metade da população do país, o segmento negro, o seu diagnostico seria bem mais preciso e sua proposta de solução seria mais acurada: “com base no Censo, vários estudos como o "Mapa da cor no Ensino Superior brasileiro" (http://www.politicasdacor.net ) do pesquisador Jose L. Petrucelli do IBGE, mostram desigualdades educacionais brutais. Com dados de 2000, ele mostrou que enquanto 22,7% dos brancos com 18 anos ou mais concluíram o Ensino Médio, somente cerca de 13% dos negros o fizeram. Só conhecendo a realidade poderemos saber se há desigualdade racial na educação e em que profundidade. E, mais importante, combatê-la e não ser conivente”.
Certamente, o prof. Pochmann não é racista, mas não se preocupou, por vício cultural, do básico, a desigualdade brutal do negro em face ao branco evidenciada nos indicadores da educação. Mesmo nos bolsões de pobreza e miséria urbana, os índices socioeconômicos do pobre e miserável branco são superiores aos negros-pardos. Não é uma questão de classe. Trabalhador branco de mesmo patamar socioeconômico do negro recebe salário bem mais elevado. Não sendo discriminado pela cor da pele, obtém mais facilmente lugar de trabalho.
Impõe-se, pois, que a realidade real do país seja revelada pelos índices socioeconômicos do segmento mais numeroso e mais excluído do país, o negro e pardo. É a partir daí é que devem ser analisados os índices socioeconômicos. Quaisquer outras políticas que não sejam dirigidas prioritariamente ao segmento negro, jamais alcançará a isonomia na sociedade brasileira. Só aumentará, claro, a desigualdade, o fosso entre brancos e negros-pardos.
A tão falada “dívida social”, sim, é devida unicamente aos negros. Foram eles que durante 300 anos construíram as bases econômicas do Brasil, em condições brutais de escravatura, a custo da completa exclusão da sociedade, impedidos de se educarem minimamente.
O negro é, pois, o único segmento populacional que ainda não foi pago pela construção do país chamado Brasil, agora, a 10. economia do planeta. Não fosse o trabalho do negro, continuaríamos ser a Terra dos Papagaios, a Pindorama, talvez, uma Bolívia maior, ou coisa parecida.
Neste cenário, as cotas de negros nas universidades, sobre as quais muito se fala nos dias de hoje é apenas um detalhe. Embora seja justa e necessária, irá ao encontro de uma minoria que conseguiu superar o gargalo no ensino fundamental e médio, podendo assim de candidatar à vagas nas universidades. Mas a massa da população negra continuará excluída.
Como bem diz o senador Cristóvão Buarque, a solução da dívida social é a educação. Sem educação, jamais será resolvida a questão social. Deste modo, impõe-se priorizar urgentemente a educação dos negros.
Prioritariamente por que importa a adoção imediata de um programa educacional para negros, fundamental e médio, resgatando afinal a dívida social que o país tem com os negros. Quanto mais rapidamente for implantado, mais rapidamente será encerrada a vergonhosa desigualdade socioeconômica existente no país. Enquanto a metade da população brasileira a negra e parda estiver alijada do processo de desenvolvimento jamais haverá no Brasil justiça social...e justo crescimento socioeconômico.
O pagamento efetivo da dívida social com o segmento negro-pardo do país, claro é um dever básico de justiça social. Não é privilegio algum. Importa reconhecer que, nós, brancos, estamos em débito com os milhões escravos africanos, cuja obra da construção do Brasil para o homem branco nunca foi paga, embora lhes tenha custado a precária e vergonhosa situação social em que vivem os seus descendentes em nossos dias. É isso.
Gicélia e Karina!
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
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